sexta-feira, 27 de maio de 2011

O biotipo do aluno da USP e a Banca do Distinto

Certas visões de mundo parecem estar arraigadas no ser humano, apesar dos avanços das Ciências e do aprofundamento do conhecimento que temos de nossas Sociedades e Culturas.

Por exemplo, quando dizemos “o sol se levanta no horizonte” manifestamos a visão que temos do mundo , e expressa, na língua portuguesa, entre outras, de que a Terra é fixa e o sol gira em torno dela (geocentrismo).

No entanto, a partir de Copérnico, no século XVI, a humanidade sabe que a Terra gira em torno do Sol, que está imóvel no centro do sistema solar (heliocentrismo). Sábios e astrônomos repetem esta verdade até os dias de hoje, e a ciência moderna, inequivocamente, confirma este fato.

No entanto, por alguma razão, quem sabe atávica, nossos olhos continuam a nos mostrar que o Sol surge todos os dias no horizonte, cruza o céu e cai no poente.

Alguma coisa dentro de nós parece dizer: “A Terra esta imóvel”.

Outra visão de mundo que parece nos acompanhar enquanto humanos é a ideia de que somos diferentes. Talvez por medo ou ignorância, achamos que aqueles que não estão próximos a nós por laços de família ou de cultura são diferentes, fazem parte de um outro grupo.

Vemos no mundo animal, no gado, por exemplo, grupos diferentes, e achamos que isto também se aplica a nós, humanos.

As diferenças biológicas entre grupos humanos são insignificantes. Todos os estudos e trabalhos da Genética mostram isto.


Além disso, e difícil diferenciar indivíduos baseados na pigmentação da pele porque entre os dois extremos há uma variação contínua e gradual. Os geneticistas chamam isto de heranca quantitativa ou poligênica (vários genes determinam uma única característica).

E, mais importante, mesmo estabelecendo grupos de acordo com a quantidade de melanina na pele, esta característica não tem relação com o tipo sanguíneo dos indivíduos, por exemplo. Ou seja, teríamos grupos com uma única característica, diferença nas quantidades de pigmento na pele, e mais nada.

Se é impossível estabelecer conjuntos de diferenças entre dois indivíduos para depois colocá-los em grupos distintos, como estabelecer a ideia de raças humanas?

Não podemos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos deixou isto claro: Somos todos iguais.

Na prática, o conceito de raças humanas é impreciso e não tem nenhuma base científica. A ideia de raça foi usada por muitos para justificar os regimes coloniais, a escravidão de negros nas Américas, o Apartheid, e tantas outras formas de opressão e extermínio.

Primeiro dizemos que o nosso grupo é diferente. Em seguida, que ele é melhor que o outro. Então justificamos que podemos dominar o outro, definir o destino do outro (porque o outro não é capaz de decidir por si próprio). Uma centelha de ódio basta então para que tenhamos como resultado histórico os massacres de milhões de judeus pelos nazistas e milhões de chineses pelo Japão Imperial durante a Segunda Guerra.

Contudo, teimamos em ver diferenças entre nós humanos do mesmo modo que achamos que a Terra esta imóvel.

Pois bem, semana passada tivemos um caso de enorme repercussão na imprensa. O assassinato de um aluno dentro do campus da USP aqui em São Paulo. O delegado que conduz as investigações, em entrevista à imprensa, ao se referir aos dois rapazes vistos no sistema de TV de seguranca afirma: “eles são suspeitos porque não têm o biotipo dos alunos da USP.”

O delegado, como tantos de nós, foi traído por aquela visão de mundo que de existem grupos diferentes de seres humanos. Por exemplo: o grupo de alunos da USP e um outro do qual os assassinos fazem parte.

Durante a semana muitos se perguntaram: qual é o biotipo ou tipo biológico do aluno da USP? O que é um aluno da USP? Quais são suas características?

Quais diferenças biológicas existem entre o grupo de alunos da USP e outros grupos. Por exemplo: cantores de pagode da periferia, estagiários da Bolsa de Valores e secundaristas da rede pública.

Será que o assassino, ou assassinos, poderia ter cabelos loiros, pele clara bem cuidada e olhos azuis?

Será que o assassino poderia ser aluno de Direito e futuro doutor como o delegado que investiga o caso?

Certamente todos querem que o assassino seja preso e condenado, porém não podemos sacrificar os Direitos Universais do Homem em nome disso.

À polícia cabe resolver o caso com o uso de inteligência, encaminhar os acusados à Justiça e agir de forma preventiva no futuro.

À sociedade paulista e paulistana cabe discutir quais são as causas reais da violência urbana e formas de combatê-la.

Voltando ao delegado. Anos de trabalho devem ter dado a ele experiência e habilidade na resolução de crimes. Contudo, será que ele vê a Terra viajando pelo espaço a 108.000 kilometros por hora? Ou será que ele acha que a Terra permanece imóvel?

Como cantava Vandré na sua Disparada, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”.

Como também cantava o inesquecível Billy Blanco na Banca do Distinto, “não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho. Pra que tanta pose doutor? Pra que esse orgulho? A bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca. Um enfarte lhe pega doutor e acaba essa banca”.

Um comentário:

  1. Texto perfeito, didático, usa o conhecimento humano pra interpretar a realidade presente e dar-lhe sentido.

    O caso do aluno da USP e o viés preconceituoso do delegado - Lombroso redivivo -, a suspeição calcada no esteriótipo, muito bem analisada no artigo. Parabéns.

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